Cartaz de Rodez

O espetáculo é uma criação a partir das cartas que o ator, poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud escreveu à seu psiquiatra, Doutor Ferdière, durante o período em que esteve internado como louco no manicômio de Rodez, de 1943 a 1946. As cartas são um diálogo desesperado de Artaud com seu médico e, através dele, com toda a sociedade.

Primeiro espetáculo do Amok Teatro, Cartas de Rodez apoia-se numa pesquisa formal que confronta dois homens de teatro da mesma geração: Antonin Artaud e Etienne Decroux. Ambos romperam com seus predecessores e fundaram o trabalho do ator sobre uma visão precisa e rigorosa do corpo.

Cartas de Rodez estreou em 1998 no Instituto Philipe Pinel no Rio de Janeiro e recebeu os Prêmios Shell de melhor direção para Ana Teixeira e melhor ator para Stephane Brodt. Recebeu também o prêmio Mambembe de melhor espetáculo e a indicação para a direção. O espetáculo está no ranking dos “100 melhores da cultura” da revista Bravo! e entre os “Melhores do Ano” do jornal O Globo.

 

“Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor e quero que eles sejam ouvidos”.

Antonin Artaud



GALERIA




FICHA TÉCNICA

Autor Antonin Artaud
Tradução Llilian Escorel
Adaptação Ana Teixeira / Stephane Brodt
Direção Ana Teixeira
Elenco Stephane Brodt
Cenário Ana Teixeira
Iluminação Wilson Reiz / Stephane Brodt
Música Charles Ives e Shostakovich.
Figurinos Amok Teatro
Projeto gráfico Paolo Lima
Divulgação Pangéia Comunicações
Produção Amok Teatro




IMPRENSA




TEXTOS

O TEATRO DA CURA CRUEL - Ana Teixeira

Antonin Artaud nasceu na França em 1896. Ele foi poeta, pintor, escritor, ator e dramaturgo. Seu percurso marcou de modo decisivo áreas tão abrangentes como a literatura, o teatro, a pintura, a filosofia, a medicina e a antropologia.

Je joue ma vie 1, declarava Antonin Artaud, e não era uma metáfora. Sua vida é tão ligada à sua obra que poderíamos quase dizer que ele escreveu com a própria vida.

O sofrimento físico e mental que o constitui e que ele exprime em sua correspondência com Jacques Rivière 2 em 1923, o leva à fazer uso do ópio sob prescrição médica desde os quinze anos de idade. A droga o alivia, mas obriga a terríveis tratamentos de desintoxicação. Sua vida foi uma eterna procura da cura de sua “pavorosa doença do espírito”. Poesia, escritura, pintura, desenho, viagens e esoterismo são formas diversas de uma mesma busca. Nesta busca, o teatro e, em particular, a profissão de ator, ocupa um espaço privilegiado. A cena é o lugar eleito para a cura da dor e da impotência intelectual e criativa decorrente dela, o lugar para recuperar uma nova identidade, não-dividida, mediante uma “síntese superior do físico e do espírito”. Ser ator é a primeira vocação de Artaud, o teatro se apresenta do início ao fim como espaço terapêutico, a cena é “a possibilidade de nascer outro”, de regenerar o ser.

Esta consciência o leva a coincidir sempre sua busca pessoal com a busca de um teatro orgânico, eficaz, necessário, que possibilita ao homem se reencontrar, ou mesmo renascer. Este é o sentido da relação fortíssima, já apontado nos anos trinta noTeatro e seu Duplo 3, entre teatro e vida.

Um teatro eficaz é aquele capaz de refazer a vida, o que não seria possível sem refazer profundamente a cultura no Ocidente. Toda a obra de Artaud foi guiada pelo desejo incessante de reencontrar um ponto de utilização mágica das coisas, recusando uma consciência estética fundada em simulacros, aparências face à realidade empírica das coisas. Ele coloca a questão da linguagem e da manipulação de signos em termos de forças mágicas e da relação mantida através deles com o cosmos e com o divino. Para Artaud, o Ocidente europeu é doente porque separado, pois perdeu sua ligação com o divino, com a consciência cósmica.

As Cartas de Rodez 
Em 1937, Artaud recebe um bastão mágico proveniente de um feiticeiro da Savóia, que ele acreditava ser o bastão de São Patrick, patrono dos Irlandeses. É para a Irlanda que ele parte, afim de devolve-lo ao seu lugar de origem e de encontrar traços da cultura celta. Vivendo em condições precárias, em um país onde ele mal domina o idioma, Artaud vive pregando nas ruas com seu bastão. Acusado de ser um agitador e de vagabundagem, ele é preso e enviado pela polícia num barco de volta para a França. Um incidente ocorrido durante a viagem fez com que ele fosse, a partir de 1937, internado como louco em estabelecimentos psiquiátricos. 
Ao sofrimento do afastamento, às brutalidade de uma vida comunitária imposta, aos odores da promiscuidade, e às privações da vida em um manicômio, adicionou-se com a Ocupação alemã em maio de 1940, as carências alimentares. Assim, em Ville-Évrard 4, além de sua dignidade e de sua liberdade, Artaud começou a ser privado de seu corpo. Subnutrido, ele se torna um esqueleto, uma sombra dolorosa que tenta manter a vida. Suas cartas, as poucas que se conhecem, são longas reivindicações de comida.

 “E se ainda estou vivo, Euphrasie, é por ter uma constituição anormalmente resistente e também por um perpétuo milagre de Deus mas, na realidade, sou só um cadáver vivo e que se vê sobreviver e vivo aqui com angustias de morte”. 5

Artaud ficará esquecido até 1943, quando seus amigos se moverão para salva-lo.

A pedido do poeta Robert Desnos, ele é transferido à Rodez pelo Dr. Ferdière, médico-responsável deste manicômio.

O Dr. Ferdière, era ligado ao movimento surrealista, conhecia Artaud e era um admirador de seu trabalho. Desde sua chegada em Rodez, Artaud inicia uma intensa correspondência com seus amigos, mas também com o médico. Através destas cartas percebemos uma relação ambígua entre os dois : livrando Artaud dos manicômios onde esteve internado em condições extremamente precárias e fazendo com que fosse transferindo à Rodez, o médico salva sua vida e, como reconhece o gênio do poeta, o incentiva a retomar sua atividade literária. Ao mesmo tempo, julgando a poesia de seu paciente muito delirante, ele o submetia a violentos tratamentos de eletrochoque, prejudicando seu corpo e sua memória. Apesar da relação de amizade que se estabeleceu entre os dois, o Dr. Ferdière mantinha Artaud privado de sua liberdade e de sua dignidade, obrigando um homem que possuía todos os meios de sua maturidade para trabalhar e se manter, a viver sob a tutela de médicos em um regime de promiscuidade, com pacientes que nada tinham em comum com ele. As cartas são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez e testemunhos de um homem em terrível estado de sofrimento e de solidão.

 “Vejo na sua proposta de me trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão. Mas tem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui.

Já faz quinze dias que pedi ao Dr. Latrimolière que me deixassem tomar banho todos os dias para me manter limpo. Pedi-lhe também que evitasse me incluir no banho coletivo pois a aproximação de todos os corpos nus e o odor dos gazes mefíticos que alguns doentes exalam ofendem minha castidade, e o que me responderam é que não havia água quente. Pedi ainda que me fizessem a barba pelo menos a cada dois dias e o barbeiro me disse que não tinha tempo. E faz dois meses que o senhor prometeu me mandar uma escova de dentes e até agora não me mandou. 
O senhor bem pode notar que estou sendo maltratado, e poderá notar que também me trata muito mal, e no fim é a mim que o senhor censura dizendo que não me cuido bem.

Suas reprovações me feriram o coração, são uma afronta que preferia não ter ouvido da boca de um amigo. Sempre me preocupei com a higiene de meu corpo e apesar de meu enorme cansaço vou procurar todos os instrumentos de que preciso além de uma escova de dentes. Mas será que o senhor não notou que quase não tenho mais dentes, e que dos trinta e três que tinha só sobraram oito. Parece que o senhor já se esqueceu de como os perdi.

É cruel Dr. Ferdière, censurar um homem ferido e acidentado por maus tratos de não escovar os dentes ao saber que este mesmo homem perdeu os dentes por desgraça”. 6

Artaud chega em Rodez em janeiro de 1943. Pouco à pouco ele se refaz, recupera seu peso, seu corpo e também sua mente. Em junho estimam que já está restabelecido o bastante para resistir à brutalidade da sismoterapia, e ele é submetido a uma série de eletrochoques.

O eletrochoque, tal como é praticado nesta época, é uma extraordinária barbárie. De uma crise de epilepsia provocada, o doente acorda abobalhado após um coma que dura longos minutos. O eletrochoque abala o pensamento, tornando-o confuso, faz o paciente mergulhar “neste estertor por onde se deixa a vida” e de onde ele volta com a lembrança atroz de ter sido esvaziado de seu eu.

Já na segunda sessão, o corpo de Antonin Artaud não suporta a violência das convulsões e ele sai com fortes dores na coluna vertebral. Assim mesmo, os médicos persistem. Depois do terceiro eletrochoque, elas se tornam insuportáveis, a nona vértebra dorsal é fraturada e o médico deve abandonar este tratamento que causou tantas desordens: será necessário dois meses de leito e de cuidados apropriados antes do corpo poder ficar de pé. No final de outubro do mesmo ano, seu sistema ósseo é considerado bastante sólido para recomeçar o tratamento. Ele é submetidos ainda 12 vezes ao eletrochoque e no ano seguinte três outras séries de 12 são impostas. A cada vez ele se revolta, protesta, suplica e fala, com uma lucidez extraordinária, das razões que ele tem para condenar esta prática :

“O eletrochoque me desespera, tira minha memória entorpece meu pensamento e meu coração, transforma-me num ausente que se percebe ausente e se vê durante semanas perdido em busca de seu ser como um morto ao lado de um vivo.

Na última série eu fiquei durante todo o mês de agosto e setembro absolutamente impossibilitado de trabalhar, de pensar e de me sentir ser. 
Peço que me poupe de uma nova dor, isto me fará repousar, Dr. Ferdière, e preciso muito de um repouso.” 7

No entanto a medicinaesta medicina que “mente a cada vez que ela apresenta um doente curado pelas introspecções elétricas de seus métodos, com obstinação continua a pretender cura-lo atravessando seu corpo de descargas elétricas, jogando no abismo seu ser em 51 comas durante os três anos passados em Rodez.

Mas graças a que recursos este homem cujo corpo e mente sofreu tal violência conseguiu não se aniquilar?

O Teatro da Cura Cruel
Em Rodez, quando ele sente a possibilidade de voltar para a vida exterior, a idéia do teatro reaparece. A produção literária de Artaud neste período é marcada pela forma epistolar, reveladora de seu desejo de “dramatizar a escrita” de escrever sempre para alguém, para um leitor-espectador.
Além de recomeçar a escrever e desenhar, ele se dedica a uma intensa e quotidiana prática vocal, exercitando sua respiração e seu corpo, praticando cantos e giros conjuratórios que eram também um meio para lutar contra os feitiços maléficos que o cercavam.

Este trabalho, ele repetiu quotidianamente depois de seu retorno à Paris. A energia que ele produzia, as forças que emanavam de seu corpo enfraquecido, as incríveis variações de altura que obtinha de sua voz, a intensidade e a duração dos gritos aconteciam como um fenômeno de operação mágica. Este era o Teatro da Cura Cruel, um teatro que não precisa de sala, onde o lugar é o corpo do homem proferindo sua vida. Esta prática foi decisiva para a volta de Antonin Artaud à vida e à poesia. 
Mas estes cantos e giros eram censurados pelo médico-chefe do hospital psiquiátrico. Era desconhecer grosseiramente a teoria do grito e do sopro, do corpo do homem como lugar primordial do ato teatral que ele já tinha formulado nos anos 30 com o atletismo afetivo e o Théâtre de Séraphin 8.

Ele faz questão de deixar claro que esta prática é uma lúcida determinação, ligada ao ato de criação, e que não tem nada a ver com uma demonstração de inconsciência. Ele sempre protestava quando seus cantos escandidos eram usados como provas de sua perturbação mental. Eram cantos que acompanham um desenho ou um poema e que ele transpunha como suporte de um signo escrito ou desenhado.

“O senhor esquece que eu também fui encenador e que todas as peças que fiz eram baseadas numa utilização particular da salmodia e da encarnação. Isto é doença mental ?”

Artaud resistiu em Rodez pela escrita e pelo trabalho que ele impunha a seu corpo e à sua voz, trabalho este que é uma outra forma de escritura. 
O homem privado de sua liberdade mais elementar foi também privado de seu próprio corpo. Este mesmo corpo cujo funcionamento anárquico o fez sofrer “os estados de dor errante e de angustia”. Mas,o terrível estado de reclusão psiquiátrica, constituiu para Artaud uma extraordinária experiência cognitiva. Quando voltou à Paris em 1946, depois de passados 9 anos em manicômios ele se denomina Artaud o Mômo, como Artaud o Louco, o Bufão. Depois de ter sido tanto tempo considerado louco, agora ele sentia prazer de se fazer de louco para dizer certas verdades. Uma desta verdades essenciais diz repito ao nosso corpo. O corpo atual, desconectado da origem é o resultado de uma manipulação perpétua e perversa, em conseqüência da qual “sua anatomia, que deixou de corresponder à sua natureza”, deve ser refeita. No final de sua vida e de seu percurso artístico, Artaud concebe o Teatro da Crueldade como um grandioso projeto ético-político de insurreição física : trata-se de transformar a cena para que o homem e não somente o ator possa refazer sua anatomia, possa reconstruir um “corpo sem órgãos”. Este refazer se baseia na idéia da decomposição e recomposição do corpo e visa essencialmente a desarticulação dos automatismos que condicionam e bloqueiam o indivíduo e o impedem de agir realmente, de modo consciente e voluntário, em cena ou na vida. Depois de Rodez o Teatro da Crueldade é o teatro de um violento refazer do corpo.

Em 1938, o célebre psicanalista francês Jacques Lacan depois de ter visitado Artaud visitado no Hospício de Sainte-Anne, onde já estava internado a um ano declarou : “Está fissurado, viverá até oitenta anos, não escreverá mais uma linha, está fissurado”. As previsões do futuro guru da psicanálise foram completamente desmentidas : dos 26 volumes que compõem as obras completas, somente 8 são escritos compostos antes de 1937, isto é, antes que iniciasse o calvário das internações. Artaud morreu em 1948 aos 52 anos.

Ana Teixeira – publicado na Revista INTERFACE n°5 (Comunicação, Saúde, Educação) - Fundação UNI / UNESP (1999)

 

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1 - “Eu represento minha vida” - O verbo jouer em francês tem um sentido muito amplo. Ele significa “atuar”, “representar”, “interpretar” mas também “jogar”, “brincar”, “arriscar”. No teatro, o ator é aquele que “joue”, a tradução frequentemente encontrada em português é “interpreta” mas, no caso de Artaud, o correto seria uma palavra que reunisse o sentido de “atuar” e “arriscar”.

2 -  Jacques Rivière era o editor da Nouvelle Revue Française em  1924. Artaud envia seus primeiros poemas (Tric Trac du Ciel) à Rivière, mas este recusa a publicação, justificando que ainda são imaturos. Artaud inicia uma correspondência com o editor, não para justificar a qualidade de seus poemas mas para reivindicar o direito à sua existência, para afirmar a necessidade de escreve-los e a autenticidade das questões ali colocadas. “Me falta a concordância entre as  palavras e o minuto de meus estados”. Jacques Rivière propõe à Antonin Artaud a publicação desta correspondência, que aparecerá em 1927.

3 - Le Théâtre et son Double - Coleção Folio/Essais - Ed. Gallimard, 1964. Coletânea de textos, manifestos e conferências concluídas em 1935.

4 - Manicômio francês onde Artaud permaneceu três anos, que se encontrava em zona ocupada pelos alemães.

5 - Carta do 23 de março 1942 à  Mme. Artaud. Tradução Ana Teixeira.

6 - Montagem de cartas escritas ao Dr. Ferdière em 12 de fevereiro e 18 de maio de 1943. Extraído do texto do espetáculo Cartas de Rodez. Tradução Lilian Escorel.

7 - Montagem de cartas escritas ao Dr. Latrimolière (6 janeiro de 1945) e ao Dr. Ferdière ( 24 de outubro de 1943). Extraído do texto do espetáculo Cartas de Rodez. Tradução Lilian Escorel.

8 - O teatro de Serafim é um texto escrito para a revista Mesures que deveria entrar na composição do Teatro de seu Duplo. Ele só foi publicado em 1948 na coleção Air du Temps.


Publicado na Revista INTERFACE n°5 (Comunicação, Saúde, Educação) - Fundação UNI / UNESP (1999)”








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